Há tempos venho recebendo e-mails do professor D. onde as letras garrafais formam a frase: “JORNALISTA É UM NARRADOR DE HISTÓRIAS”
Pois bem, narrarei uma.
“Ele detestava olhares debochados sobre as suas sandálias. Ele detestava o som dos zumbidos da geladeira durante a madrugada, igualmente detestava o som do giz arranhando o quadro negro da escola. Ele detestava ter que sentar perto do professor na classe devido a sua grave miopia. Ele detestava tudo na escola. Em geral, A. era uma criança normal, ou não.
Seus cabelos loiros escorridos por cima dos óculos fundos e redondos presos ao nariz o faziam parecer mais novo. Estatura baixa para a idade e muito... mas muito magro.
Freneticamente mexia o nariz. Sua dificuldade em enxergar as letras das legendas dos filmes o obrigava a assistir aos filmes com dublagem. Isso ele também odiava. Odiava gravar em sua mente as vozes assustadas gritando coisas que ele entendia. Sua mente perambulando entre filmes de horror que acabara de ver o fizera ficar acordado por semanas.
Tirando as noites e a escola, tudo era minuciosamente controlado.
Podia decidir, por exemplo, se naquele dia preferia que seu pai o achasse inteligente: logo que acordava soltava tiros de conclusões fascinantes. De repente sua inteligência passava a sê-lo. Seu pai sorria para sua mãe como se comentasse: “como poderíamos estar sorrindo agora, não fosse a inteligência-genética...”
Mas para sua mãe, ele preferia ser o menino carinhoso. Sentava-se perto dela e a beijava. Sem que pudesse se dar conta os olhos da senhora Z. já estavam cheios de amor. Tudo estava cheio de amor.
Na sua adolescência A. se perguntava se o que fazia era justo. Aproveitar-se do seu dom de trocar de personalidade insessantemente. Alguns dias o pobre menino tentou não fazê-lo, mas percebia que tudo a sua volta (tirando a escola e os filmes de horror) podiam ser controlados por ele. Era inevitável.
Uma vez começou a calcular sobre sua prima mais nova, P. Em uma semana iria visitá-la. Pensou em que roupa ela vestiria, em que fariam juntos, em que fariam quando não houvesse nada a fazer. Decidiu ir ao banheiro toda vez que isso ocorresse. Mudou de idéia no minuto seguinte. Não queria ser lembrado como o primo-que-gostou-do-banheiro.
Logo mudou o pensamento para que tipo de primo gostaria de ser lembrado pela prima. Primo-inteligente? Primo-carinhoso? Pensou nas hipóteses de primo-palhaço, ou primo-sem-graça.
Pensou tanto que esqueceu no que tinha pensado.
Fazia quase um ano que não a vira. Como pôde crescer tanto? Todos os seus pré-resumos de como seria seu dia viraram água e escorreram pelo primeiro ralo que apareceu.
Em pouco mais de meia-hora percebeu que P. não se enchia de sorrisos quando ele fazia comentários inteligentes, nem se enchia de amor quando lhe tratava com certo carinho.
No meio do quintal lá estava a pedra. Ele correra para fora da casa para calcular que tipo de menino seria dessa vez. Mas antes que pudesse cruzar todo o quintal tropeçou na pequena pedra presa às gramas verdes e tombou com os joelhos e as mãos no chão.
Antes que pudesse encontrar seus óculos ouviu uma risadinha irritante e profunda e virou-se para ver P.
Dessa vez, além do sorriso, o coração de P se enchera de amor e apesar da falta das lentes A. pode enxergar com exatidão as covinhas do rosto rosado da prima se contraírem a incansáveis - e meigos - sorrisos.
A. passou a não mais ser o menino-alguma-coisa e agora tirava os óculos toda vez que preferisse enxergar melhor."